Com a cabeça encostada à janela observava a paisagem que passava veloz do lado de fora. Morros e vegetação, estradas e cercas, pequenas ribeiras. Tudo indistinto sob um céu azul escuro e negro, sem lua, mas pontilhado de estrelas. Quando criança queria ser astronauta. Viajar pelo espaço, para outras galáxias. Pensava sobre isso, sobre tudo e nada e seus pensamentos absorviam toda sua atenção, pelo que não percebeu a aproximação do Pica, nem o educado “o seu bilhete se faz favor”. Só quando ele lhe tocou no ombro retornou à realidade.
— Peço desculpas.
Vasculhou a mochila que repousava sobre o colo até o encontrar. O Pica validou o bilhete e devolveu-o, sorrindo. Não o viu afastar-se em direção à porta. Já estava outra vez com o olhar perdido no mundo lá fora.
O comboio diminuiu a velocidade até parar numa estação, uma plataforma elevada ao longo dos carris. Um par de metros adiante do lugar onde se encontrava, a luz no poste de iluminação vacilava e acabou por apagar, para voltar a acender-se logo a seguir, mas com uma luz muito mais fraca e intermitente, deitando sobre o mundo um manto de sombras bailarinas.
Sua atenção foi arrastada em direção à cerca que separava a plataforma da vegetação. O Escuro ali era rei. A pouca luz deixava perceber alguns contornos, mais nada. Sentiu um arrepio na espinha. Algo se mexeu. Fôra isso que atraiu sua atenção. Acabou por encontrar um par de olhos pequeninos que pareciam fixar-se em sua direção. O miado, abafado pelos vidros e portas fechadas, apaziguou seu coração. Sorriu e deitou o olhar para o céu enquanto a locomotiva voltava a se pôr em marcha.
As luzes da cabine se apagaram. Não se importou. Isso acontecia com frequência à noite, nos comboios que serviam aquela linha. Tanto melhor, pensou. A visão do lado de fora era ainda mais arrebatadora.
O tempo passou sem que se desse conta. As luzes retornaram, mas fracas e intermitentes. Parou para pensar e percebeu que a próxima estação nunca mais chegava. Olhou para o relógio. 10:37. Estranho. A que horas havia subido no comboio? Não conseguia lembrar. Não lembrava sequer de ter subido para o comboio. No que estaria pensando na altura? Não era normal andar no mundo da lua. No que tinha estado a pensar esse tempo todo? Apenas o vazio se fazia presente. Sabia que estivera a admirar o céu noturno, a paisagem na escuridão, mas era como se tivesse desligado a mente. Como se…
— Miau.
O coração parou por um segundo. Um berro bem que tentou escapar, mas ficou preso na garganta. Um gato. No comboio. Nada de pânico, pensou. É só um gato. Encolheu-se quando este aproximou-se e saltou para o banco ao lado, mas apenas ficou ali, a olhar. Afinal, era uma gata. Tricolor. Como a sua… Será? Como a sua Sushi? Não fazia sentido. Ela tinha morrido há muitos anos. Mas… Quase podia jurar que…
Com os músculos ainda tensos, bateu com as palmas nas coxas, como costuma fazer quando era criança, para chamar Sushi para seu colo.
— Miau.
A gata inclinou a cabeça de lado. Um nó surgiu em sua garganta. Bateu novamente com as palmas nas coxas e a gata pareceu reconhecer o movimento. Levantou-se e aninhou-se em seu colo. Arriscou afagar o pêlo da gata e quando chegou ao pescoço, a gata começou a ronronar e a esfregar a cabeça em sua mão.
— Sushi…
Não foi mais do que um murmúrio, ainda assim a gata pareceu reconhecer o nome e a ronronar mais alto.
Uma calma estranha apoderou-se de si. Era como se estivesse tudo certo. Como se já não precisasse de se preocupar com absolutamente nada. Tudo iria ficar bem. Recostou-se novamente para poder admirar o espetáculo que ia lá fora. A gata dormitava ronronando em seu colo, sob os carinhos de suas mãos.
As luzes se apagaram completamente e não tornaram a acender.
Jauch
1Pica. Alcunha dada aos funcionários que pedem os bilhetes aos passageiros do comboio.
2Você, que leu este pequeno conto… O que consegues dizer sobre sua personagem principal? Quem é a personagem para você?
3Este conto é um exercício literário e tem uma característica bastante peculiar. Acho eu! lol Será que você consegue perceber qual é essa característica? 🙂 Já agora, depois de ler o conto, o que acha que está acontecendo aqui? Como foi que preencheste as lacunas que eu deixei?
4Não, eu não fiz a devida revisão neste conto. Apenas passei um corretor ortográfico para tentar pegar alguma gralha mais grosseira que tivesse escapado durante a escrita. #Desculpa.
Jauch (olha eu aqui de novo! rs), eu tô ligada que sua gata chama-se Sushi. Aí presumi que você nunca teve uma gata com esse nome. Mas como mencionou que ela já havia morrido há muitos anos no conto, pensei que narrador pudesse ser o seu filho. Acertei? rs E o “truque” consciente era a narrativa onisciente mesmo?
CurtirCurtido por 1 pessoa
*nunca teve uma gata com esse nome antes.
by the way, arrasou no tema! tá lindão e bem imagético.
CurtirCurtido por 1 pessoa
A narrativa, em sua forma, não é o truque em si, mas é a ferramente que proporciona a diferença 😉
CurtirCurtido por 1 pessoa
E qual é o truque?
CurtirCurtido por 1 pessoa
Sai a resposta hoje 🙂
CurtirCurtir
Boa! 🙂
CurtirCurtido por 1 pessoa
ih, estava com o login errado quando comentei lá em cima.
CurtirCurtido por 1 pessoa
lol
CurtirCurtir
Os miados intermitentes da gata no decorrer do texto me pegaram de surpresa… O suspense cresceu… Cheguei a achar que essa sua narração estava tomando o rumo do terror/fantástico.
Ah! Enganou-me! ^^
CurtirCurtido por 2 pessoas
Tive a mesma impressão! Puxou-me o tapete rs
CurtirCurtido por 2 pessoas
Né?!
XD
CurtirCurtido por 1 pessoa
Será que enganei? 😉 lol
Bom, terror não seira, de certeza, porque não é o tipo de história que me atraia.
Mas poderia esta história ser perfeitamente normal para uns e fantástica para outros??? 😀
CurtirCurtido por 1 pessoa
Estava indo num rumo que me levava a crer nisso… Mas, ok, agora que sei que o terror não lhe atrai, posso esperar que uma história desse tipo nunca seja escrita por ti, né? Ou quem sabe algum dia vc me surpreenda, Jauch? ^^
CurtirCurtido por 1 pessoa
Eu sou sempre a favor de surpreender 😉
O terror (no geral), não me atrai. Mas eu nunca descarto nada 😉 rs Até porque há muito espaço dentro do termo “terror” 🙂
CurtirCurtido por 1 pessoa
Então, surpreenda-me, Sr. Jauch! ;P
Verdade! Li “Drácula” esses dias e me surpreendi: uma leitura mais cômica que aterrorizante.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Também gostei muito dessa leitura 😊 E não de preocupe, surpreenderei 😉 (o tempo agora está propício para plot twists lol)
CurtirCurtido por 1 pessoa
o narrador onisciente parece-me o fio condutor de toda a história. e nela estamos nos envolvendo também, como personagens do lado de fora. um texto instigante. grande abraço.
CurtirCurtido por 2 pessoas
Obrigado Fernando!
É curioso que o narrador não foi escolhido, ele simplesmente surgiu, em parte pela necessidade…
Abraços!
CurtirCurtido por 2 pessoas
Sempre qdo escrevo procuro o narrador onisciente, por ser o que faz o leitor estar no texto digamos conduzindo a história. Afinal, é dele a decisão o tempo todo. Està na hora de eu voltar a escrever. Grande abraço.
CurtirCurtido por 3 pessoas
Ora, acho que está mesmo na hora de voltar a escrever 😛
Eu passei ANOS tentando “começar” a escrever… lol Agora não páro mais 🙂
Até decidir parar, claro. haha
CurtirCurtido por 2 pessoas
Lindo! Ao ler, você mergulha na história e participa dela. A característica eu acho que é a descrição, que eu adoro e acho que você fez isso de uma maneira espetacular! 👏👏
CurtirCurtido por 3 pessoas
Obrigado Daniela!
Eu tento sempre cuidar muito bem da ambientação, e a característica do texto (que pode até ser meio “boba”, tem impacto nisso. E nem havia passado pela minha cabeça que seria assim… 🙂
CurtirCurtido por 2 pessoas
Realmente, a forma habilidosa com que você cuidou do céu, das estrelas… eu estava lá dentro do texto! 🙂
CurtirCurtido por 1 pessoa
Que bom, Renata! ^^
CurtirCurtir
[I relied on a translator] A somewhat creepy piece, with a surreal touch. My fave moment is when ‘Sushi’ came into play—so tense. 🍸
CurtirCurtido por 2 pessoas
Thanks, Kamus 🙂
I’ll try to post English versions of my material, to make reading (if desired) easier 🙂
And yes, I tried to create some “atmosphere” at that moment, but I confess that I am not satisfied… Well, I’ll do better next time 🙂
CurtirCurtir
I guess the (Google?) translator did its job, for once. lol I got the same impression.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Google translator it was. And yes, I guess sometimes it does what it’s supposed to be doing, sometimes it just gives us users a heck of an ordeal 🙂
CurtirCurtido por 2 pessoas
yes, it does!
CurtirCurtido por 1 pessoa
¹Bom saber
²O personagem principal sou eu, leitor imaginando e sentindo cada cena… No ego involved. xP
CurtirCurtido por 2 pessoas
hehehehe
É curioso que basicamente todo mundo que lê percebe o efeito, que na verdade não foi algo em que eu pensara previamente, mas que faz todo sentido. Mas não sei se o pessoal consegue perceber “conscientemente” o motivo. Ou talvez seja tão banal que nem passe pela cabeça que é disso que estou falando. haha
CurtirCurtido por 1 pessoa
Acertei de certa forma? Então escreva mais assim!
CurtirCurtido por 2 pessoas
Obrigado Tiel 🙂
Vou tentar. Pelo menos escrever com o mesmo cuidado que tive. 🙂
P.S. done & done 😂
CurtirCurtido por 2 pessoas